Cultivo de maconha com fins medicinais no Brasil
- Ana Clara Cremasco
- 4 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Resumo: Notícias sobre pacientes que conseguiram na justiça autorização para plantar maconha com fins medicinais têm se tornado cada vez mais comuns, mas a realidade é que, até hoje, não há regulamentação específica sobre esse tema no país. Então, de que forma esses pacientes têm conseguido a garantia desse direito?

Apesar de a possibilidade de autorização do plantio da maconha para uso medicinal e científico, por parte da União, estar expressamente prevista na nossa legislação desde 2006 (art. 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas), essa alternativa ainda resta inviabilizada diante da falta de regulamentação específica.
Em 2019, com a Resolução RDC Nº 327, a Anvisa criou uma classe de “produtos à base de cannabis”, mas ainda assim, nada foi regulado sobre o plantio, uma vez que, essa mesma normativa dispõe que até as empresas precisam importar o insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado (art. 18). Portanto, quem cultiva maconha no Brasil, sem autorização judicial, corre o risco de incorrer no crime de tráfico de drogas.
Diante da ausência de regulamentação específica sobre esse tema, o valor expressivo dos medicamentos disponíveis, tanto para a venda em território nacional, quanto para importação, torna o custo do tratamento proibitivo para muitos pacientes, deixando-os ainda mais suscetíveis a enfrentar a ilegalidade, diante da delicadeza do momento, expondo-se a produtos de baixa qualidade, aos perigos do tráfico e ao risco da prisão.
Numa tentativa de minimizar os efeitos de uma legislação proibicionista, cidadãos e associações de pacientes têm buscado a justiça para obter a permissão para o cultivo e extração artesanal dos compostos da planta, visualizando nesta a maneira mais rápida e barata de acessar o tratamento. ¹
Então, seguindo a ideia de assegurar a proteção do cidadão do poder de polícia do Estado e das penas restritivas de liberdade, garantindo a democratização do acesso ao tratamento, tem-se utilizado do remédio constitucional do habeas corpus preventivo como instrumento descriminalizador do cultivo de cannabis para fins medicinais.
Por que o habeas corpus preventivo?
Em resumo, o habeas corpus está disciplinado na nossa Constituição Federal e configura-se como um instrumento que visa garantir algum direito fundamental do indivíduo, prevenindo ou anulando uma prisão arbitrária (feita por motivos outros que não o estrito cumprimento da lei).
Portanto, pode assumir duas formas, concedidos em situações distintas: habeas corpus preventivo ou liberatório. O primeiro é usado quando se está diante apenas de uma ameaça ao direito, enquanto o segundo, mais comum na prática jurídica, é usado depois que já houve a restrição da liberdade.
No caso da proteção aos que cultivam a cannabis com fim terapêutico, para evitar o enquadramento da conduta no descrito no ilícito penal de tráfico de drogas, é feito o uso do habeas corpus preventivo.
Então, não se trata de um pedido de autorização para iniciar o cultivo, mas sim da busca por uma decisão que garanta que aquele que já cultiva possa continuar o fazendo, sem temer a prisão.
Em sede judicial, alguns juízes não acreditam ser essa a via adequada para a efetivação do direito ao plantio. Em contrapartida, decisões favoráveis ao cultivo trazem pontos de vista valiosos para uma completa visão jurídica sobre o tema.
Amparados pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelos direitos constitucionais à vida e à saúde, os posicionamentos recentes destacam a potencialidade profilática das substâncias presentes na planta e entendem que não se afigura coerente que a lei, cujo bem jurídico tutelado é a saúde pública, impeça a fruição plena deste mesmo direito.
O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o HC como via adequada para afastar o risco de prisão do cultivador medicinal e foi além, afirmando que tal conduta não deve ser vista como crime. No caso em questão, o colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.
Essa decisão, por si só, não tem o condão de modificar a realidade do vácuo legislativo sobre o tema, mas é de extrema importância quando se pretende equilibrar a jurisprudência. Portanto, é preciso ponderar que o Poder Judiciário atua caso a caso. Sendo assim, diante da falta de regulamentação específica, sempre haverá o risco de o magistrado atuante no caso concreto entender de forma distinta.
O fato de que os processos dessa natureza tramitam em segredo de justiça, de certa forma, dificulta precisar o número de casos que têm chegado aos tribunais, mas estima-se que, até o final de 2022, já haviam cerca de 500 pessoas autorizadas pela Justiça a cultivar maconha no Brasil. ²
Por fim, é válido ressaltar que o art. 28 do Código Penal não prevê pena privativa de liberdade, portanto, a utilização do HC para os cultivadores em questão se justifica pelo estado contínuo de violência institucional no que se refere a aplicação da Lei de Drogas. A esse respeito, observa Cecilia Galicio ²:
"O salvo-conduto para o cultivo terapêutico de maconha só é necessário no Brasil por um motivo: nós vivemos em estado contínuo de violência institucional quando se trata da aplicação da Lei de Drogas. Veja: faz sentido que tenhamos medo da polícia mesmo que diante da ausência de atividade criminosa, como é o caso de cultivo para uso pessoal? Os pacientes realmente temem fazer o cultivo da substância que lhes garante qualidade de vida, pelo medo da polícia. Não faz sentido, e é por isso que, para antes de falar sobre o cultivo terapêutico, nós deveríamos nos perguntar: o que temem os pacientes ao cultivar? Em outras palavras, porque eu não posso cultivar maconha na minha casa, nos moldes do que estabelece o art. 28 da Lei de Drogas? Porque o Estado não vai cumprir a Lei. (...) Pergunto: a legalização do cultivo de maconha industrial, com a finalidade precípua de atender interesses econômicos, mormente os da indústria farmacêutica, sem contemplar o autocultivo, vai impedir que as pessoas continuem sendo presas ou vai resultar “apenas” no fornecimento de remédios de cannabis pelo SUS? A legalização do cultivo de maconha pela indústria diminuirá o medo que os pacientes que plantam têm da polícia? A violência policial diminuirá com a legalização da maconha para as farmácias? E para responder à pergunta que abre essa discussão, desculpem, a resposta é outra pergunta: depois que foram satisfeitos os interesses econômicos da bancada, como ficará o encarceramento e o genocídio em massa produzido pela Lei de Drogas, que parece não ser interesse de ninguém?"
Sendo assim, é imperioso reafirmar o papel historicamente ocupado pelo HC, no sentido de denunciar a violência institucional. No caso do cultivo medicinal de cannabis, não é diferente.
REFERÊNCIAS
ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 327, de 9 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 dez. 2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
_______. Código de Processo Penal. Decreto Lei nº3689 de 3 de outubro de 1941. In: Vade mecum penal e processual penal. 3ª ed. Noteroi, RJ: Impetus, 2012. p.234-289.
² OPEN GREEN. HCs para cultivo de cannabis com fins terapêuticos no Brasil. E-book desenvolvido para divulgação gratuita com conteúdo de cunho informativo. 06 set. 2022. Disponível em . Acesso em 10 out. 2022.
PINHIERO, Chloé. Cannabis Medicinal: o que esperar dela. Veja Saúde, São Paulo, edição 482, p. 26-37, agosto, 2022.
¹ SANTOS, Ana Clara Cremasco e BANDEIRA, Marcos Antônio Santos. O caminho para o acesso legal ao cultivo de cannabis medicinal no Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito. Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Ilhéus – BA, 2022.
STJ. Sexta Turma dá salvo-conduto para pacientes cultivarem Cannabis com fim medicinal. Notícias Superior Tribunal de Justiça, 14 jun. 2022. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/ >. Acesso em: 05 out. 2022.
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