O jogo virou? Da criminalização ao reconhecimento das propriedades terapêuticas da maconha no Brasil
- Ana Clara Cremasco
- 8 de mai. de 2023
- 7 min de leitura
Que a maconha não foi sempre proibida no Brasil a gente sabe, e com tantos estudos e avanços legislativos sobre o uso dessa planta enquanto ferramenta terapêutica, dá para perceber que o assunto está voltando a protagonizar muitas discussões país a fora.
Mas por que ela foi criminalizada num primeiro momento? E o que mudou?

Fato é que, o uso da Cannabis ssp (popularmente conhecida como maconha) é uma prática terapêutica milenar, que consta em catálogos farmacêuticos pelo mundo há séculos.
No Brasil ela chega com os escravos, ainda no período colonial, quando o uso medicinal era fortalecido por aqui e, por vezes, estava tipicamente inserida em rituais de religiões de matriz africana.
A realidade tecnológica dos aparatos científicos disponíveis naquela época e o desconhecimento sobre os compostos químicos responsáveis pelos efeitos medicinais da planta (que só começaram a ser isolados em 1960), naturalmente, fez com que a indústria farmacêutica optasse pelo desenvolvimento de remédios com indicações mais específicas ¹.
Mas em que momento passou a ser proibida?

Acompanha o contexto histórico:
→ 1888: Lei Áurea (ratifica a extinção do trabalho escravo dos negros em nosso país - mas não lhes oferece nenhuma garantia);
→ 1890: (um ano depois da instauração da república no Brasil) aprovado o Código Penal, com a “Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação” (com o claro viés de controle social e manutenção da ordem estabelecida pela população branca);
→ século XX: marcado pela política de restrição às drogas encampada pelos EUA (o Brasil segue o exemplo e apresenta uma postura proibicionista em relação ao uso de substâncias entorpecentes);
→ 1961: Convenção Única de Nova York, a ONU passa a ser responsável pela fiscalização internacional sobre drogas e classifica a cannabis como droga de alto potencial de dependência e sem valor terapêutico, ao lado da heroína, ecstasy, entre outros (a maconha virou “droga” em nível global, no significado mais comum da palavra).
A partir daí, surgiram leis reprimindo a venda e a utilização da planta e a campanha difamatória da cannabis estava em seu auge, disseminando desinformações e estacionando pesquisas – velando o cunho político e econômico, intimamente ligados ao preconceito racial e social, que concretizou o racismo estrutural como molde da política estatal de criminalização ².
Mesmo com tantas restrições, alguns cientistas seguiram testando a erva e, com o avanço lento das pesquisas, descobriram que os efeitos do uso da maconha vêm das substâncias chamadas canabinoides, mas a explicação para a sua diversidade de aplicações está no sistema endocanabinoide, que só foi descoberto na década de 1980 e mostrou uma excelente interação entre as moléculas presentes na planta (fitocanabinoides) e moléculas produzidas pelo nosso corpo (endocanabinoides), presentes em todas as membranas celulares e na intercessão dos nossos vários sistemas, o que permite uma comunicação entre diferentes células e a coordenação de funções centrais do corpo. Quando se fala no uso medicinal da maconha, o fitocanabinoide mais conhecido é o canabidiol (CBD), por possuir, entre outras, propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e calmantes, revelando o seu enorme potencial terapêutico ³.

Hoje, já é possível dizer que o Brasil reconhece a maconha como uma ferramenta terapêutica, principalmente quando observamos as mudanças no nosso conjunto normativo e decisões até então inéditas em todo o país.
Todo o nosso ordenamento jurídico é vinculado pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que está disciplinado no art. 1º, inciso III, da nossa Constituição Federal, a mesma que estabelece a saúde universal e pública como um legítimo direito fundamental do cidadão brasileiro, e, ao mesmo tempo um dever do Estado, no sentido de assegurar os pressupostos necessários para o exercício pleno e digno deste dispositivo indistintamente a todos, ao menos em tese (artigos 6º e 196).
Sendo realista e considerando o tamanho da população brasileira, os diferentes grupos sociais, distintos problemas e as diversas especificidades necessárias para um atendimento global, dá para admitir que é ilusória a ideia de que o Estado, sozinho, consiga efetivar o direito à saúde de todos.
Do outro lado, a Lei de Drogas (Lei 11.343/06), promulgada em 2006, prevê que a União pode autorizar o plantio, cultura e a colheita de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, quando os fins são exclusivamente medicinais ou científicos (art. 2ª, parágrafo único). Aqui, entenda “União” como “Ministério da Saúde” (é o que determina o artigo 14, inciso I, alínea c do Decreto 5.912/2006).
Oito anos depois, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza o uso compassivo do CBD, ou seja, apenas em casos que métodos já conhecidos não apresentassem resultados satisfatórios (Resolução CFM nº 2.113/2014) e em 2015 a Anvisa autoriza a importação de produtos derivados da Cannabis quando prescritos por um médico, em caráter excepcional e para tratamento próprio (RDC nº 17). Mas, só quatro anos depois (2019) a Anvisa cria uma classe para os produtos à base de Cannabis (RDC n° 327), o que significa que ainda não são classificados como medicamentos, mas abre caminho para que pessoas jurídicas possam operar na fabricação, importação ou comercialização desses produtos, mediante uma autorização. Vale ressaltar que permaneceu a lacuna quanto ao cultivo da planta, uma vez que o artigo 18 dessa normativa disciplina que empresas farmacêuticas não podem cultivar e produzir a substância base no país, tendo que importá-la.
Em 2020, no mesmo ano em que a OMS aprovou a reclassificação da maconha e da resina derivada da cannabis para um patamar que inclui substâncias menos perigosas, a Anvisa altera alguns critérios para a importação de produtos derivados de cannabis por pessoas físicas, exigindo apenas a apresentação da prescrição médica para o pedido (RDC 335).
Aparentemente, problema resolvido, certo? Infelizmente não, porque o custo da importação é alto, ainda mais quando considerado o preço do medicamento, o frete internacional, as taxas de importação e demandas aduaneiras, o que afasta essa possibilidade da realidade de uma grande parcela dos brasileiros.
Diante de todo o exposto, conseguimos perceber um progresso minucioso. Gradativamente o Brasil deixa de lado o insustentável conservadorismo e, pautado no conhecimento científico, se enfrenta a ignorância, a desinformação e a má-fé daqueles que, embasados em suas concepções morais individuais tentam ofuscar os benefícios e o potencial medicinal dessa planta. Tudo isso, sem perder de vista a contradição ainda latente de um Estado que, de um lado, reconhece as propriedades terapêuticas da planta e seus usos na medicina, mas, de outro, não se movimenta em transformações concretas para garantir a melhor efetivação do direito à saúde de sua população.
Agora, a questão é: de que forma consigo efetivamente me beneficiar desses tratamentos?
No próximo post te respondo essa pergunta, mostrando 04 formas possíveis de acessar produtos com Cannabis no Brasil.
REFERÊNCIAS
ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 327, de 9 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 dez. 2019.
_______. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 660, de 30 de março de 2022. Define os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 02 mai. 2022.
BBC. A 'legalização silenciosa' da maconha medicinal no Brasil. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
_______. Código de Processo Penal. Decreto Lei nº3689 de 3 de outubro de 1941. In: Vade mecum penal e processual penal. 3ª ed. Noteroi, RJ: Impetus, 2012. p.234-289.
_______. Decreto n. 5.912, de 27 de setembro de 2006. Regulamenta a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que trata das políticas públicas sobre drogas e da instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 27 set. de 2006.
_______. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Congresso Nacional, em 26 de janeiro de 1999.
_______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 23 ago. de 2006.
¹ GASPAROTTO, Francielli Brandt e GAMARRA, Carmen Justina. A influência do Estado e os dilemas da Democracia brasileira no uso medicinal da cannabis. In: Revista Orbis Latina, vol.10, nº 2, Edição Especial, ISSN: 2237-6976, Foz do Iguaçu - PR, abr. 2020. Pág. 79 - 88. Disponível em: < revistas.unila.edu.br/index.php/orbis >. Acesso em: 07 jun. 2022.
² MALCHER-LOPES, Renato. Maconha, a mais antiga revolução da medicina. Revista Jurídica Consulex, São Paulo, ano XVIII, n. 414, abril de 2014, p.39.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Gabinete do Ministro. Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial, Brasília, 31 de dezembro de 1998.
_______. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 17, de 06 de maio de 2015. Define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinoides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde. Diário Oficial, seção 1, nº 86, 08 de mai. de 2015.
³ PINHIERO, Chloé. Cannabis Medicinal: o que esperar dela. Veja Saúde, São Paulo, edição 482, p. 26-37, agosto, 2022.
SANTOS, Ana Clara Cremasco e BANDEIRA, Marcos Antônio Santos. O caminho para o acesso legal ao cultivo de cannabis medicinal no Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito. Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Ilhéus – BA, 2022.
Parabéns! Ansioso pelas próximas publicações…